A Mãe, a Menina, o Torpor e o Chico
Submetida às constantes
oscilações de humor da mãe alcoólatra, a jovem adolescente vive uma vida
emocionalmente instável entre o amor quase incondicional que une mãe e filha e
a inevitável repulsa pelo indivíduo que, conscientemente, entrega-se à sua
própria ruína.
No dia-a-dia, a menina tem de
cozinhar para ambas, limpar a casa, agüentar os destemperos e a falta de regras
da mãe – apesar de na maior parte do tempo sua vida ser uma provação, os poucos
momentos em que a mãe aflora por trás da alcoólatra são compensadores: os
afagos, as conversas amistosas e os risos cúmplices de ambas nesses momentos são
o fio de esperança que sustenta a filha, que a faz projetar um futuro melhor
para ambas, para o mundo delas. Passados esses raros momentos, a mãe mergulha
em seu torpor embriagado e a menina volta ao torpor da angústia e do trabalho duro,
sempre à espera do próximo lampejo que lhe refaça a energia e restaure a
esperança.
O que parece a sinopse de um
livro de alguma escritora irlandesa do século XX é, na verdade, uma alegoria.
Uma metáfora, uma simplificação de sentimentos que me invadem quando o assunto
é o Brasil.
Assim como o clichê do
pintinho que toma por mãe a primeira criatura que vê ao sair do ovo, é evidente
que amo o Brasil pelo simples fato de aqui ter nascido. Por mais embriagada que
seja, esta é minha nação, este é meu país. Esta é minha terra. Muitas vezes, essa
‘pátria amada, mãe gentil’ me embaraça: dói-me o torpor coletivo de nós todos,
sua gente – nós todos juntos somos a filha dessa mãe, por vezes tão bêbada. (É
óbvio, falo da nação, não da terra.)
Amar alguém que nos destrata
não é fácil. O amor de verdade não é algo que simplesmente se descarte, não é
algo que se abra mão com leveza: por vir de dentro, lá do fundo, o amor é uma
parte de nós. Quando esse amor não é correspondido, o resultado é dor: adoecemos,
o pêndulo balança, e o amor se torna raiva. É inevitável imaginar a menina
fictícia deitada aos prantos em sua cama após mais uma briga com a mãe, após
mais uma desilusão. Em muitos momentos, nossa relação de brasileiros com o
Brasil é igual: atiramo-nos chorando sobre nossos travesseiros, amaldiçoando
nossa condição, tentando em vão livrarmo-nos desse vínculo; xingamos,
diminuímos, ofendemos, esperneamos, negamos... para depois, passada a fúria, voltarmos
à consciência de que essa é a nossa natureza: somos filhos dessa mãe e, por
isso, a amamos. Nossa aparente raiva é a única defesa desse sentimento que nos
faz ser quem somos.
Ontem, como em raríssimos
momentos recentes, foi um momento em que senti a mãe carinhosa e otimista por
trás da escura nuvem do torpor brasileiro. Os próximos dias dirão se foi um breve
lampejo de sobriedade ou um passo rumo a algo novo, diferente, verdadeiramente
transformador: se foi um respiro entre dois torpores ou se foi o primeiro passo
rumo a uma desintoxicação permanente.
Assim como a menina fictícia
do primeiro parágrafo, a dor dos tempos passados me torna um tanto descrente,
um tanto cético: temos medo da desilusão, temos medo do trauma de ver mais uma
vez a esperança que brota ser atirada à lama.
Por outro lado, é justamente
o amor filial que mantém viva essa esperança: como uma brasa, basta uma leve brisa
para que a labareda da esperança se erga.
No fundo, eu e a menina do
texto – e imagino, muitos outros brasileiros – temos medo do tombo da desilusão
de, mais uma vez, alimentarmos o fogo da esperança. Ao mesmo tempo, tudo o que eu,
a menina do texto e, imagino, muitos outros brasileiros queremos é justamente
uma brisa que nos acalente, que nos traga forças para olhar adiante e esperar: “desta
vez, a coisa muda.”
Pode até vir o tombo: por
ora, tudo o que eu quero é abraçar e sorrir junto com minha Mãe Brasil. “Amanhã
vai ser outro dia”.
© 2013, Claudio Quintino Crow - Proibida a reprodução total ou parcial da obra sem a prévia e expressa autorização por escrito do autor. Lei Federal 9.610/98. www.claudiocrow.com.br
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