"A"

- Então eu lhe pergunto, o que é isso?

- É um 'A'.

- Quem te garante?

- Hein?

- Eu concordo, também acho que é um 'A', mas quem nos garante?

- Ué, todo mundo sabe que isso é um 'A'...

- Todo mundo que sabe ler nosso alfabeto, né? Porque para quem não sabe, são três risquinhos.

- Tá. Tudo bem. Mas e aí?

- Aí que eu vou te dizer que isso não é o "A".

- Como assim? Você não acabou de dizer que para nós que conhecemos o alfabeto isso é o 'A'?

- Então... Esse não é o 'A': esse é o símbolo que representa o 'A'. Porque o 'A' é um som; e esse som não existe dentro do símbolo.

- Peraí, agora você me confundiu...

- É assim: o 'A' é um som, certo? Que usamos de diversas formas nas palavras que falamos.

- Ok.

- Algum dia, muito tempo atrás, uns caras acharam importante criar símbolos para que as coisas ditas pudessem ser 'ouvidas' mesmo sem ninguém ali para dizê-las, e a isso chamou-se 'escrita'.

- Certo. "Para que as coisas ditas pudessem ser 'ouvidas' mesmo sem ninguém ali para dizê-las"... Gostei disso.

- Pois então, a escrita é uma convenção, um acordo que a gente celebra para poder 'negociar' os sons. Porque imagina se cada pessoa inventasse seu próprio 'A'...

- Ia ser uma zona!

-Ia, ninguém iria se entender. Então alguém falou, "esses três risquinhos aqui agora representam o som 'A'..."

- Sei. Mas os risquinhos não são o som...

- Isso! Nem a representação do som se limita a esses três risquinhos, porque outras escritas usam risquinhos diferentes para o som 'A'...

- Caraca...

- É... Isso mostra a importância da convenção: negociar uma linguagem comum para o pessoal se entender; mas a letra 'A' não é o som 'A' - somente um símbolo convemcionado por um grupo para representar esse som.

- Puxa... Mas qual o interesse em saber isso?

- Bom, em primeiro lugar, é bom saber que isso se aplica a praticamente tudo: letras que representam sons, leis que representam conceitos morais, deuses que representam forças...

- Tudo então é representação??

- Bem-vindo ao universo poético dos mitos.

© 2.014 - Claudio Quintino Crow
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