Monday 1 April 2013

Na verdade, todo dia é da mentira


Não há espaço para a imperfeição no moderno mundo ocidental: consciente ou inconscientemente, somos todos levados a buscar aquele ideal de ‘perfeição’ em nossos corpos, mentes e conduta – uma perfeição que, infelizmente, não existe pelo simples fatos de sermos humanos e, principalmente, porque a perfeição maniqueísta idealizada pela mente ocidental simplesmente inexiste no mundo real.


Por conta disso, vivemos vergados sob o peso de tentarmos atingir essa perfeição utópica e, pior ainda, negativamos elementos naturais intrínsecos de sermos quem somos – ‘defeitos’, por assim dizer, que não cabem na percepção de perfeição a que somos condicionados.
Um desses defeitos é a ‘mentira’. É bom deixar claro que não se trata de uma apologia à mentira – especialmente em tempos como os nossos, onde tanto se falta com a verdade e tanto dano se traz com a falsidade. Mas convém lembrar que o radical que origina a palavra ‘mentira’ é o mesmo que gera palavras como ‘mente’, ‘mental’, ‘memória’, ‘comentário’ – nenhum deles, como se vê, necessariamente negativos. A prática da mentira é por si negativa, mas sua origem não: a ‘mentira’ é o uso da mente para criar algo que não existe – há nos nossos dias uma tênue (e equivocada) separação entre ‘mentira’ e ficção, ‘mentira’ e mito, ‘mentira’ e fantasia.

Ora, a ficção e a fantasia são irrealidades (‘mentiras’) que entretêm e fazem sonhar a milhares, milhões de pessoas. Por si só, a concepção de uma não-verdade – algo que não existe - é uma das mais belas e transformadoras faculdades da mente humana. Quando usada de forma positiva, chamamo-la de ‘criatividade’, ‘imaginação’: ela alimenta nossos sonhos, impulsiona nossas descobertas, cria nosso futuro. Quando mal usada, a capacidade de imaginar algo que não existe é chamada de mentira: destrói a confiança, envenena relações, desfia o tecido social que interliga as pessoas e demais criaturas.

Mitologicamente falando, a ‘mentira’ (ou a inverdade) é uma poderosa ferramenta de transformação. Incontáveis heróis e deuses de diversas mitologias fazem uso da mentira – disfarces, dissimulações, ardis - em seu aspecto criativo para superarem obstáculos, vencerem adversários mais fortes, ludibriarem seus oponentes. Nesses casos, a mentira torna-se ‘astúcia’: o famoso Cavalo de Tróia das lendas gregas é um clássico exemplo. Deuses como o clássico Hermes-Mercúrio, o celta Lugh, o yorubá Eshu e o nórdico Loki são deidades que, ao desrespeitarem as regras divinas, promovem o progresso e a mudança – os chamados ‘tricksters”, ou pregadores de peças. Muitas criaturas literárias desempenham a mesma função – são aqueles que, ao “distorcerem a realidade”, geram uma nova verdade – e até a bíblica traição de Judas é uma forma de alterar o curso das coisas para que o poder transformador do mito se manifeste em todo o seu potencial. O “Coringa” das cartas é o pregador de peças por excelência: ao assumir a identidade de outra carta, ele ‘mente’ sua real natureza, adapta-se, transforma-se, promove a unidade da jogada.

O atual “Dia da Mentira” e as peças nele pregadas são uma versão reduzida e (em tese) bem humorada desse elemento psicológico: em nossas vidas, o pregador de peças é aquele que nos propõe o desafio que gera novas formas de pensar e agir – e, portanto, produz a evolução. Muitas vezes a figura do ‘pregador de peças’ surge para ridicularizar o herói, provocando-o com mentiras e calúnias para que revele seu real potencial.

Por vezes, o pregador de peças é punido pelos deuses – como o Prometeu grego e o já mencionado Loki, mas mesmo assim o processo por eles disparado segue seu curso de transformação da realidade.

Como já dito, a intenção deste ensaio não é enaltecer, nem mesmo suavizar, o aspecto negativo da mentira, mas sim de compreender a origem de sua natureza e, a partir disso, perceber que talvez seja melhor compreendermos que, gostando ou não, essa e outras imperfeições fazem parte de nossa própria natureza. Ao admitirmos a existência da Mentira, enaltecemos e reforçamos as virtudes da Verdade.

Mas o que é a Verdade? Se a Mentira como a conhecemos é um conceito abstrato de interpretação linear polarizada, o mesmo vale para a Verdade. Não existe verdade absoluta, pois toda verdade é relativa e deve ser compreendida dentro de parâmetros de interpretação e contexto. Viver uma vida de verdade, em Verdade, é uma das metas de quem se dispõe a trilhar um caminho sagrado. Por ser individual, a compreensão da verdade não vem do mero estudo das leis divinas ou dos mitos e lendas de uma dada cultura, mas sim da compreensão de como essas leis, mitos e lendas reverberam em cada um de nós, de que forma nos provocam e estimulam, o que nos levam a fazer, pensar e dizer.

A primeira verdade que temos de descobrir é a nossa própria natureza individual – com todas as suas virtudes e defeitos. E como reza a sabedoria celta, “A verdade é a cola que mantém coeso e unido todo o universo”. Faltar com a verdade é atentar contra a própria estabilidade do cosmo. Que sejamos mais hábeis ao lidar com a Mentira - ao nos depararmos com ela e, sobretudo, àquela que impomos a nós mesmos quando não sabemos quem de fato somos.

1 comment:

  1. Adorei o texto! Abraços! Uma boa ideia seria um dia internacional da verdade... já pensou? rs

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