Não há espaço para a imperfeição
no moderno mundo ocidental: consciente ou inconscientemente, somos todos
levados a buscar aquele ideal de ‘perfeição’ em nossos corpos, mentes e conduta
– uma perfeição que, infelizmente, não existe pelo simples fatos de sermos
humanos e, principalmente, porque a perfeição maniqueísta idealizada pela mente
ocidental simplesmente inexiste no mundo real.
Por conta disso, vivemos vergados
sob o peso de tentarmos atingir essa perfeição utópica e, pior ainda,
negativamos elementos naturais intrínsecos de sermos quem somos – ‘defeitos’,
por assim dizer, que não cabem na percepção de perfeição a que somos
condicionados.
Um desses defeitos é a ‘mentira’.
É bom deixar claro que não se trata de uma apologia à mentira – especialmente em
tempos como os nossos, onde tanto se falta com a verdade e tanto dano se traz
com a falsidade. Mas convém lembrar que o radical que origina a palavra ‘mentira’
é o mesmo que gera palavras como ‘mente’, ‘mental’, ‘memória’, ‘comentário’ –
nenhum deles, como se vê, necessariamente negativos. A prática da mentira é por
si negativa, mas sua origem não: a ‘mentira’ é o uso da mente para criar algo
que não existe – há nos nossos dias uma tênue (e equivocada) separação entre ‘mentira’
e ficção, ‘mentira’ e mito, ‘mentira’ e fantasia.
Ora, a ficção e a fantasia são
irrealidades (‘mentiras’) que entretêm e fazem sonhar a milhares, milhões de
pessoas. Por si só, a concepção de uma não-verdade – algo que não existe - é
uma das mais belas e transformadoras faculdades da mente humana. Quando usada
de forma positiva, chamamo-la de ‘criatividade’, ‘imaginação’: ela alimenta
nossos sonhos, impulsiona nossas descobertas, cria nosso futuro. Quando mal
usada, a capacidade de imaginar algo que não existe é chamada de mentira: destrói
a confiança, envenena relações, desfia o tecido social que interliga as pessoas
e demais criaturas.
Mitologicamente falando, a ‘mentira’
(ou a inverdade) é uma poderosa ferramenta de transformação. Incontáveis heróis
e deuses de diversas mitologias fazem uso da mentira – disfarces,
dissimulações, ardis - em seu aspecto criativo para superarem obstáculos, vencerem
adversários mais fortes, ludibriarem seus oponentes. Nesses casos, a mentira
torna-se ‘astúcia’: o famoso Cavalo de Tróia das lendas gregas é um clássico
exemplo. Deuses como o clássico Hermes-Mercúrio, o celta Lugh, o yorubá Eshu e
o nórdico Loki são deidades que, ao desrespeitarem as regras divinas, promovem
o progresso e a mudança – os chamados ‘tricksters”, ou pregadores de peças.
Muitas criaturas literárias desempenham a mesma função – são aqueles que, ao “distorcerem
a realidade”, geram uma nova verdade – e até a bíblica traição de Judas é uma
forma de alterar o curso das coisas para que o poder transformador do mito se
manifeste em todo o seu potencial. O “Coringa” das cartas é o pregador de peças
por excelência: ao assumir a identidade de outra carta, ele ‘mente’ sua real
natureza, adapta-se, transforma-se, promove a unidade da jogada.
O atual “Dia da Mentira” e as
peças nele pregadas são uma versão reduzida e (em tese) bem humorada desse
elemento psicológico: em nossas vidas, o pregador de peças é aquele que nos
propõe o desafio que gera novas formas de pensar e agir – e, portanto, produz a
evolução. Muitas vezes a figura do ‘pregador de peças’ surge para ridicularizar
o herói, provocando-o com mentiras e calúnias para que revele seu real
potencial.
Por vezes, o pregador de peças é
punido pelos deuses – como o Prometeu grego e o já mencionado Loki, mas mesmo
assim o processo por eles disparado segue seu curso de transformação da
realidade.
Como já dito, a intenção deste
ensaio não é enaltecer, nem mesmo suavizar, o aspecto negativo da mentira, mas
sim de compreender a origem de sua natureza e, a partir disso, perceber que
talvez seja melhor compreendermos que, gostando ou não, essa e outras
imperfeições fazem parte de nossa própria natureza. Ao admitirmos a existência
da Mentira, enaltecemos e reforçamos as virtudes da Verdade.
Mas o que é a Verdade? Se a
Mentira como a conhecemos é um conceito abstrato de interpretação linear
polarizada, o mesmo vale para a Verdade. Não existe verdade absoluta, pois toda
verdade é relativa e deve ser compreendida dentro de parâmetros de
interpretação e contexto. Viver uma vida de verdade, em Verdade, é uma das
metas de quem se dispõe a trilhar um caminho sagrado. Por ser individual, a
compreensão da verdade não vem do mero estudo das leis divinas ou dos mitos e
lendas de uma dada cultura, mas sim da compreensão de como essas leis, mitos e
lendas reverberam em cada um de nós, de que forma nos provocam e estimulam, o
que nos levam a fazer, pensar e dizer.
A primeira verdade que temos de
descobrir é a nossa própria natureza individual – com todas as suas virtudes e
defeitos. E como reza a sabedoria celta, “A verdade é a cola que mantém coeso e
unido todo o universo”. Faltar com a verdade é atentar contra a própria
estabilidade do cosmo. Que sejamos mais hábeis ao lidar com a Mentira - ao nos depararmos com ela e, sobretudo, àquela que impomos a nós mesmos quando não sabemos quem de fato somos.